quinta-feira, 30 de junho de 2011

Histórias do Cinema III


"Os filmes de que gostamos têm essa capacidade... Trabalham-nos por dentro quando os vemos e deixam--nos uma cicatriz perpétua, um rasgão que nos tatua a alma para o resto da vida. Para o bem e para o mal eles são os filmes da nossa vida, aqueles que desenham os territórios onde gostamos de nos encontrar/perder." 
http://www.clubeoitoemeio.blogspot.com/

O projecto expositivo Histórias do Cinema é organizado pelo clube de cinema 8 e meio, da Escola Secundária Eça de Queirós, Póvoa de Varzim e consta de uma mostra anual, na Biblioteca Municipal Rocha Peixoto, onde são reunidos trabalhos em formato A5, realizados por convidados de diferentes áreas profissionais. A grande motivação (que de resto se mantém) para a realização da primeira exposição em 2009 foi a angariação de fundos para o Concurso de Vídeo Escolar 8 e Meio, um evento realizado a nível nacional, e destinado a todos os estudantes do ensino secundário. Nas edições transactas, foram expostos cerca de 120 trabalhos, todos eles realizados pelos nossos convidados segundo a premissa da exploração visual de um dos filmes da sua predilecção.





Os trabalhos devem ser realizados a partir de um daqueles que se convencionou chamar os “filmes da nossa vida”. São aceites todas as formas de intervenção gráfica e plástica - pintura, desenho, fotografia, colagem, gravura, texto, etc. Os trabalhos devem ser bidimensionais e realizados em suporte A5. Os autores cedem os trabalhos ao Clube 8 e Meio, abdicando da verba de 50 Euros obtida pela hipotética transacção dos mesmos. No caso dos trabalhos não vendidos, o Clube 8 e Meio ficará seu proprietário e procederá ao seu arquivo na Escola secundária Eça de Queirós, utilizando-os em futuras iniciativas. 

Este ano, o clube de cinema 8 e meio prepara a terceira edição das Histórias do Cinema a inaugurar a 8 de Julho, novamente na Galeria da Biblioteca Municipal Rocha Peixoto, na Póvoa de Varzim.





(um dos) filmes da minha vida: Vai e Vem, o último de João César Monteiro

Vão (vê-lo) e venham. E depois voltem e vejam-no outra vez.




http://www.joaocesarmonteiro.net/?page_id=205&lang=pt

domingo, 21 de novembro de 2010

Do outro lado das árvores.





Por Maria Leonor Barbosa Soares


Tive já oportunidade de referir a necessidade de tempo e de concentração para perscrutar o espaço sensual e conceptual de Márcia Luças
[1]. O que desse exercício resulta para o observador dá a conhecer a maior e particular qualidade do seu trabalho. Márcia Luças constrói “dispositivos de interrogação” que contêm as indicações das etapas de formulação, desde a apreensão física de um trecho da realidade, numa experiência concreta e pessoal, até à identificação das questões sobre essa experiência, sobre as possibilidades de a colocar em imagem sem a descrever, sobre a aculturação da imagem provável e da prática artística e tudo isto embebido em indicadores da consciência do corpo como suporte de todas estas reflexões. Nesta via conceptual exponenciada, que multiplica as interrogações e as reformulações das interrogações, as respostas e as reformulações das respostas, a representação é apenas material de explicitação necessário para a invenção dos mecanismos de interrogação sobre a realidade.
Apesar da complexidade, a obra surge natural, segundo uma sequência de passos marcados pela ligação a práticas do dia a dia, a partir de acontecimentos que vão exigindo reflexão em seus variados tempos, ou de ideias que se vão ligando e chamando outras. Do mesmo modo, aí encontra fundamentos a escolha dos diversos materiais utilizados como o vidro, o plástico, a madeira, o papel…, a variedade de técnicas como o recorte, o desenhos, a fotografia, a pintura, o grafismo… e de métodos de montagem como a colagem simples, a assemblage, a inversão da tela, o díptico articulado, a estrutura em puzzle… Nessa experiência concreta e pessoal da realidade, na ligação orgânica a uma maneira de estar, se constrói a capacidade de abarcar uma malha intrincada de relações.
De acordo com este desenvolvimento natural, as obras de “Paraíso mais tarde” [2] encadeiam-se e enraízam na série anterior, “Reversível”[3].
A convocação da gravura de Dürer, Adão e Eva, é de várias maneiras incisiva. A escolha deste autor e desta obra em particular apresentam ao observador um tema base, o conhecimento. Márcia Luças utiliza a imagem simétrica da gravura de Dürer de 1504 tornando a imagem argumentativa num outro registo, o da análise sobre o seu próprio sentido, para o qual contribui, ainda, a exclusão da maçã da mão de Eva, as alterações das ramificações e na folhagem da árvore e a ocultação do texto da placa que Adão segura. A Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, indicadora de dicotomias, questiona-se enquanto tal, no papel da sua imagem simétrica e indicia um olhar sobre o outro lado das coisas. Tem correspondentes visuais nas oposições transparência/opacidade; anverso/reverso; cima/baixo; racionalidade/intuição; definição/ambiguidade; finalidade/transição e ainda na presença física forte dos materiais em contraste com a sua própria fragilidade ou no carácter gráfico de alguns elementos em relação com situações de tridimensionalidade.
Não é possível deixar de ter em conta o significado da evocação do próprio Dürer, referente ele mesmo de uma atitude não conformista perante o conhecimento transmitido. E esta gravura documenta o seu trabalho de pesquisador de um cânone das proporções humanas, pesquisa em que se envolveu na sequência do conhecimento da existência do trabalho de Vitrúvio sobre as proporções da figura humana, a que se seguiu a opção de estudar directamente os textos de Vitrúvio e, depois, a vontade de encontrar as suas próprias soluções, publicadas em 1528[4]. A gravura de 1504 corresponde à primeira proposta de Dürer de acordo com os seus princípios sobre a harmonia do corpo humano. Mas prosseguiria esse estudo.
Utilizando a imagem reflectida como proposta de leituras “a começar pelo fim”, como apresentação da possibilidade do inverso ou da complementaridade do negativo, Márcia Luças oferece-nos indicativos de que os próprios processos de construção e recepção da imagem estão em questão. Sendo o espelho metáfora da consciência e de uma atitude reflexiva, remete-nos para a consciência da “percepção em retalhos”, da compartimentação do conhecimento e interpretação também compartimentada da realidade. De novo a árvore seccionada se torna metáfora. Cada parcela se converte num extracto da realidade. Na grelha construída para manter o puzzle, os deslocamentos de cada elemento, uma dessas focagens parciais da árvore, permitem chegar a níveis diferentes de significado (Inverno do meu descontentamento).
A lógica interna de cada trabalho de Márcia Luças inclui a provocação ou interpelação do observador para que resolva ou decida sobre a interpretação dos nexos e dos confrontos entre as sensações e os conceitos, o lugar do cérebro e do coração, das memórias e das emoções. Montagens de texto e imagem em combinações várias - por vezes justaposição simples sugerindo encadeamento, outras vezes em sobreposições com carácter de síntese - vão construindo sistemas de retroprojecção de impressões sensíveis e de conceitos. A luz atravessa o vidro, os materiais transparentes e translúcidos, revela o anverso e o reverso e o tempo entre os dois. Os elementos no espaço interior que funcionam como objectos/síntese indicam a outra possibilidade, o outro ponto de vista, materializado no outro lado. São assim as réguas que representam todos os instrumentos de medida e avaliação irresistíveis para o ser humano e servem a reflexão sobre as dualidades “visão global coerente/ particularismo” ou ainda “universalidade/circunstancialidade” presentes tanto na arte como na ciência. Em ambas, a tentação de desafiar o tempo. A tentação dos sistemas de classificação e das árvores [do conhecimento]...  
A tentação das árvores. Delicada ironia de Márcia Luças.


                                                                                                           Novembro de 2007


[1] Comunicação “Figuras atravessadas por paisagens lentas”, VII Curso Livre de Arte Ibero-Americana, FLUP, 2006.
[2] Série apresentada numa exposição que decorreu na Galeria Alvarez de 17 de Novembro a 31 de Dezembro de 2007.
3 Série apresentada numa exposição que decorreu na Galeria Alvarez de 20 de Janeiro a 1 de Março de 2006.

4 Os Quatro Livros sobre as Proporções Humanas publicados alguns meses depois da sua morte.


sexta-feira, 12 de novembro de 2010














              

babelopolis 2009

opacos territórios entre transparências. texto para babel de Leonor Barbosa Soares

opacos territórios entre transparências

Numa arquitectura de células-ideias, Márcia Luças, estrutura um trabalho sobre a informação, os códigos, os ruídos e as interferências… a partir de um seccionamento crítico e analítico de experiências quotidianas de comunicação ou de tentativas de passagem de informação.
Essa análise é materializada em diferentes ambientes criados em pequenas caixas, sendo cada um dedicado a uma ideia relacionável com trabalhos anteriores. Assim se reconhece o tema e a composição de tiny golden key, obra que é, de vários modos, chave: pela ligação que estabelece com as séries reversível e paraíso mais tarde; e, ainda, na medida em que proporciona o acesso à trama visual e à lógica estrutural que aqui nos convoca.
A transparência tem, sem dúvida, um papel fundamental, no sentido global da instalação, pela interacção visual que provoca entre os diferentes elementos de uma construção que se ergue irregular e assimétrica. As sobreposições de desenhos e colagens ou a interferência dos vários objectos (que compõem cada unidade da instalação) no trajecto de visualização uns dos outros conduzem a uma nova composição, uma re-figuração em que se mantêm visíveis cada uma das originais figurações mas se faz ver uma outra resultante da conjugação delas.
No registo interpretativo, a transparência proporciona deslocamentos e alterações sequenciais que arrastam ou induzem a circulação e integração de um determinado signo num outro contexto ou circunstância; deste modo, é sugerido ao observador uma reflexão sobre sua intervenção na construção de algo que se admite como ficção mas, também, sobre a sua intervenção na construção daquilo que admite como real e, enfim, sobre a interdependência dos dois níveis.
Pela mesma via e, ainda, pela relação entre leves opacidades, se compreende a razão da recuperação e persistência de objectos e imagens que Márcia Luças, inscreve, em babel, num novo campo de significações. São reincorporados em sequências temáticas no cruzamento das quais funcionam, simultaneamente, como termos de vários discursos que a verticalidade, a horizontalidade ou a obliquidade permitem apreender, segundo as diferentes direcções e sentidos percorridos. Encontramos a linha condutora dessas narrativas, aludida ou explicitamente indicada, de novo, através da interacção das caixas/ambientes com as pequenas telas que, por sua vez, também se apresentam expandidas como suporte e veículo expressivo, pela subversão na utilização das superfícies e pela habilitação plástica da grade e do espaço do reverso.
Por vezes, as sobreposições levam à subjugação de registos, recortes e desenhos parecendo competir até ao limite do negro que tudo poderia absorver. Contudo, aqui, o negro afirma-se não-silêncio, pleno de todas as reverberações. Tumulto em quietude, prenuncia-se chave de um outro código e, como metáfora, coordena-se com os efeitos de sombras criados pelas fontes de luz no interior de algumas caixas/ambientes.
A instalação que se expande, simultaneamente frágil e invasora, inclui uma perspectiva crítica que admite a possibilidade de uma outra montagem, de uma outra organização final, e pressupõe uma abertura permanente do sentido: as infindáveis relações de ordem possíveis pertencem ao observador.
No seu conjunto, a acumulação de imagens, signos e símbolos, e a implícita sugestão de caos, induz uma reflexão sobre graus de iconicidade, sobre as linguagens, sobre o que pode ser comum e partilhado. Utilizando uma estratégia que inclui a contradição - se analisa e isola um trecho de realidade também sobrepõe e confunde – Márcia Luças convida a um jogo combinatório que pode levar a uma interrogação sobre o que cada um faz emergir dessa constelação de informações ou sobre a relação objectivo-subjectivo, exigindo do observador a consciência de que qualquer relação forma/fundo, qualquer identificação de mensagem, está em permanente ajustamento e depende de uma hierarquização de pormenores cujo processo lhe cabe compreender.

Maria Leonor Barbosa Soares